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Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs
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Não é fácil ter uma ideia da devastação que o racionalismo e o modernismo fizeram nos católicos no decurso do século XIX.
O espírito deles vinha sendo infiltrado por materialistas e revolucionários de todos os matizes, ardendo de revolta contra o sobrenatural.
Esses católicos desfibrados alegavam a precedência do “social” e até se ufanavam em se dizerem “católicos sociais”.
Na prática, sob vago véu de religião, repeliam tudo quanto não caísse diretamente sob a ação e o controle dos sentidos.
Por isto mesmo, a integridade do catolicismo, no qual o sobrenatural é visível e autêntico, foi posta de quarentena pela mídia e pelos governos secretados pela Revolução Francesa que iam derrubando as monarquias ainda impregnadas de tradição católica.
Todos os espíritos procuravam libertar-se da crença na ordem sobrenatural que não se enquadrava rigorosamente dentro das leis da natureza proclamadas por Marx, Darwin e Freud, entre outros.
Nove décimos da opinião europeia estavam eivados de racionalismo e de modernismo.
A contaminação daquelas tremendas formas de heresia não era igual em extensão e profundidade.
Mas era mais visível em uns, menos em outros, mas grassava até entre os católicos leigos os mais eminentes.
1 – havia aqueles atirados aos extremos da irreligiosidade, isto é ao ateísmo radical, o anticlericalismo militante até sanguinário;
2 – havia aqueles que, sem ter a coragem de romper com a convicção religiosa, estavam fora da Igreja, admitindo um espiritualismo ou um cristianismo vago, acomodado aos modernistas e racionalistas;
3 – havia os que se proclamavam católicos, mas sustentavam doutrinas contrárias às da Igreja;
4 – havia, por fim, aqueles que procuravam interpretar capciosamente a doutrina católica, alterando-a em alguns pontos para acomodá-la com os erros da época.
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Libre-pensadores e revolucionários de toda espécie atacavam até pelas armas a Santa Sé. Detalhe da épica batalha de Mentana |
Estavam inteiramente fora dessa classificação, os que haviam rompido inteiramente com o espírito do século, como santos gloriosos do quilate de São João Bosco, de Santa Teresinha do Menino Jesus, de Santo Antônio Maria Claret, para citar só alguns.
Esses se conservavam sem nenhuma jaça de racionalismo ou de modernismo.
Mas nas fileiras do laicato eram tão poucos que podiam ser contados pelos dedos, especialmente nos círculos intelectuais e sociais elevados.
A Igreja parecia um imenso edifício que se esboroa aos pedaços, aliás como parece também hoje em dia.
De seus milhões de filhos, pouquíssimos conservavam seu autêntico espírito.
Na sua quase totalidade, eles conservavam apenas réstias crepusculares de Fé, que anunciavam que o dia de Deus estava chegando ao seu fim. E a noite completa não haveria de tardar.
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À vista disto, como deveria agir a Santa Igreja?
As opiniões estavam divididas neste assunto que era dos mais delicados.
Uma reação clara e definida geraria imensa oposição, arrastando para a heresia explícita muitos espíritos ainda ligados mole e mediocremente à Igreja Católica.
Mas, se não se opusesse um dique formal e categórico à heresia que ia subindo, mais cedo ou mais tarde, os desastres seriam tais que a Igreja sofreria os mais tristes e mais angustiosos dias de sua existência.
O Beato Pio IX optou pela energia e convocou o Concílio do Vaticano I, a fim de decidir sobre a infalibilidade papal.
Antes mesmo desse Concílio ele proclamou como verdade infalível o dogma da Imaculada Conceição com a bula Ineffabilis Deus de 8 de dezembro de 1854.
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O Beato Pio IX proclama o dogma da Imaculada Conceição.
Franceso Podesti (1800–1895), Museus Vaticanos, detalhe
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Foi um grande e largo gesto de audácia enfrentando o espírito do século.
Falar em dogmas naquela época era uma temeridade. Definir dogmas novos, temeridade maior. E definir como dogmas a Imaculada Conceição e a Infalibilidade papal, em uma época tremendamente racionalista e democrática, parecia uma verdadeira loucura.
Uma imensa celeuma se levantou nos arraiais católicos quando a deliberação do Pontífice foi conhecida, maximamente a nível episcopal e cardinalício.
A oposição foi tão forte que a quase totalidade dos Bispos franceses e grande parte dos Bispos de língua alemã se opôs claramente à definição daquelas duas verdades de Fé.
Por que isto?
Não era porque discordavam delas, porque já vinham sendo professadas pela Igreja havia séculos.
Eles não queriam a proclamação desses dogmas porque achavam que o espírito do século XIX só poderia ser atraído por um largo sorriso de concessão e de tolerância.
Eles recusavam golpes de audácia e propunham uma invariável brandura para converter as massas.
Achavam eles que a firmeza da linguagem evangélica do “sim, sim; não, não” (Mateus 5:37) naquela época seria loucura, e que ante essa atitude cheia da ousadia de Nosso Senhor Jesus Cristo, todos se irritariam e se confirmariam no erro.
A única tática viável consistiria em contemporizar e conquistar por doces coexistências.
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No Concílio do Vaticano, reuniu-se a Santa Igreja através de seus Bispos, iluminados pelo Espírito Santo, e a bem dizer, este problema estratégico nunca se apresentou com tanto vigor, desde o Concílio de Trento, havia três séculos.
Os fatos pareciam dar inteira razão aos Bispos de opinião diversa da do Papa. Uma celeuma imensa se levantava pela Europa. As apostasias se multiplicavam.
O Concílio discutia longa e apaixonadamente o seguinte problema:
1 – um gesto de vigor imunizaria os elementos não contagiados?
2 – ou exacerbaria os espíritos vacilantes e os levaria à heresia?
3 – sobretudo, não enraigaria no erro indivíduos que pela concessiva persuasão, poderiam ser conduzidos à Verdade?
À primeira questão, o Concílio respondeu, “sim”. Às outras duas, “não”.
Foi este o significado da promulgação solene daqueles dois grandes dogmas antes e durante o Concílio.
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Imaculada Conceição, São Francisco da Penitência, Rio de Janeiro |
Rios e rios de tinta se gastaram para provar que o Concílio era retrógrado e obscurantista. O filósofo republicano brasileiro Rui Barbosa escreveu seu famoso “O Papa e o Concílio”, um ensaio introdutório ao teólogo excomungado Johann Joseph Ignaz von Döllinger que elogiou como “uma tese contra a inabilidade papal” onde “a revolta contra a Igreja era franca e declarada...”.
Cfr. verbete “Ruy Barbosa”.
Entretanto, os resultados esperados pelo Beato Pio IX não se fizeram esperar muito.
Em primeiro lugar, os católicos sérios deram sua adesão incondicional ao Papa.
No seio do povo, as verdades definidas foram aceitas graças ao vigor com que a Igreja as promulgara.
Nos círculos intelectuais, a energia do Papa lhe atraiu o respeito geral.
O racionalismo e o modernismo foram decaindo. E, em poucos anos a Igreja havia esmagado o dragão que ameaçou devorá-la.
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A festa da Imaculada Conceição comemora também esse acontecimento histórico.
Erraram os que condenaram as manifestações vigorosas da Fé naquele momento e para tudo e sempre.
Ficaram taxados de estultice aqueles que julgaram imprudente e contraproducente a energia e o vigor combativo dos filhos da Luz contra os filhos das Trevas.
Foi o triunfo formidável e definitivo do Beato Pio IX com o vigor comunicado pela Santíssima Virgem que esmaga perpetuamente a cabeça da serpente.
O modernismo e o racionalismo foram enfrentados e esmagados.
Mas, como fazem os insetos daninhos, eles se dissimularam em recantos assumindo a forma de mil erros diversos que voltaram a atacar no século XX e prosseguem até hoje.
A Imaculada Conceição, entretanto, não cessou e nunca cessará de esmagar a cabeça da serpente, quer dizer dos erros que reaparecem renovados e até piorados em hereges escancarados ou em católicos amolecidos.
A festa da Imaculada Conceição é a festa que comemora o momento iminente, já no terceiro milênio, em que o magnífico golpe do espírito de Fé e coragem do Beato Papa Pio IX há de ser renovado num gesto da Igreja que passará para a História.