Raio atinge a cúpula da Basílica de São Pedro poucas horas após a renúncia de Bento XVI. Foto Alessandro di Meo/AFP |
• Roberto de Mattei (*)
Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado.
O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com a sensação de perda”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Angelo Sodano.
Se foi tão grande a perda dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.
No entanto, a possibilidade da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a ideia da “renúncia” de João Paulo II, quando a sua saúde havia se deteriorado.
O cardeal Ratzinger, no seu livro-entrevista Luz do Mundo, de 2010, disse ao jornalista alemão Peter Seewald que se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “fisicamente, psicologicamente e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”.
Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta do teólogo suíço Hans Küng aos bispos de todo o mundo, com estas palavras: “Acreditamos que o pontificado de Bento XVI pode ter-se exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar sua demissão do cargo.”
E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci escreveram sobre a possível renúncia do Papa, esta hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que assentimento.
Não existe dúvida sobre o direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém”.
Nos artigos 1 º e 3 º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.
Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito na Perugia em 5 de julho de 1294 e coroado em L'Aquila em 29 de agosto seguinte.
São Celestino V (1215-1296), padroeiro de Isernia, renunciou num contexto muito peculiar |
Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia papal e das roupas, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, por sua vez, foi eleito Papa Benedetto Caetani com o nome de Bonifácio VIII.
Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas pela assembleia sinodal em 4 de julho de 1415, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII.
Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal-bispo do Porto (na Córsega) e com o primeiro posto após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província italiana Le Marche e morreu em Recanati em 18 de outubro 1417.
Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “cargo jurisdicional da Igreja”, não indelevelmente ligado à pessoa que o ocupa.
A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (ver, por exemplo, São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q 39, a 3, resp., III, q 6-2).
Ambos poderes são direcionados a realizar os objetivos peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: a potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; a potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
O poder de ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento e com a impressão de um caráter sagrado. A posse da potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem é concedido.
De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, é para sempre e nenhuma autoridade humana pode excluir essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
Outra característica importante do poder da ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício.
As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação de espaço.
Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.
A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático que opõe o poder da ordem ao poder de jurisdição, a igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica.
O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e jurisdição.
Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário”, e não vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da novidade contínua de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e mental”, disse à emissora Südwestundfunk Küng, que vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja.
O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente de arbitragem, ao lado de uma estrutura eclesiástica "aberta", qual sínodo permanente, com poder de decisão.
No entanto, caso se acredite que a essência do Papado está no poder sacramental da ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que é indelével como a ordenação sacramental da qual deflui.
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Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que a summa potestas do Papa deriva da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se sua posição se seu múnus se basear sobre o poder de jurisdição.
Pela mesma razão não pode haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “aposentado”, como tem sido impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.
O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor, por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002:
"Segundo a grande tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma disposição que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Papa ao atingirem 75 anos, e é verdade que todos os bispos recebem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que normalmente elas são aceitas e as renúncias acolhidas. Mas esta é uma regra e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesados as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.”
A norma pela qual os bispos renunciam a sua diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na história da Igreja que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado ad convivendum et commoriendum (2 Cor 7, 3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de todos os batizados, vincula de fato não somente até uma certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.
Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.
Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um ato não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro.
Crucifixão de São Pedro. Massaccio, Pisa. São Pedro padeceu até o fim longas e aparentemente insuportáveis perseguições |
Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.
Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem por sua vez foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente.
Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade:
“No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é também necessário o vigor, seja do corpo, seja da alma, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal, que devo reconhecer a minha incapacidade".
Não nos defrontamos com uma deficiência grave, como foi o caso de João Paulo II no final de seu pontificado.
As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como ele demonstrou numa de suas últimas últimos e mais significativas meditações para o Seminário Romano, e sua saúde é “geralmente boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa alertou nos últimos tempos para “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.
No entanto, desde o momento da eleição, cada pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado.
Quem pode afirmar-se capaz de suportar com suas próprias forças o munus de Vigário de Cristo?
Mas o Espírito Santo assiste o Papa não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo nos mais difíceis, de seu pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspira cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio.
Mas a questão é: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde, que não experimentaram o declínio da força nem sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI?
Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e se não o fizer elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem, na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado para a grave missão que o espera.
A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu ao Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.
Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja.
Depois dessa data, Bento XVI ainda poderá ser protagonista de cenários novos e inesperados. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado.
O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, a barca de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?
[Fonte: Corrispondenza Romana, 12-02-13]
_______________(*) Historiador e jornalista italiano Roberto de Mattei, nascido em 1948, é professor de História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, na qual é o coordenador da Escola de Ciências Históricas. Entre 2004 e 2011 foi por duas vezes vice-presidente do principal organismo estatal italiano de apoio às ciências, o Conselho Nacional de Pesquisa.
Membro do Conselho de Administração do Instituto Histórico para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana, ele colabora com o Comitê Pontifício de Ciências Históricas.
Foi agraciado com a insígnia da Ordem da Santa Sé de São Gregório, o Grande, em reconhecimento pelos seus serviços prestados à Igreja.
Em 2010, Roberto de Mattei publicou o livro O Concílio Vaticano II - Uma história nunca escrita, o qual lhe valeu o mais prestigioso prêmio italiano para livros históricos: o Acqui Storia/2011. Recentemente traduzido para o português, e difundido no Brasil pela Petrus Livraria, pode ser adquirido por meio de seu site.
QUEM ATENTOU CONTRA O SANTO PADRE E A IGREJA DE ALGUMA FORMA TEM SEU QUINHÃO...
ResponderExcluirO sabio e santo Papa Bento XVI renunciou por se sentir incapacitado para enfrentar os problemas do Vaticano: promover uma assepsia geral, varrer de lá falsos padres, bispos e cardeais acaso existentes e teriam sido infiltrados por maçons, comunistas, protestantes e ateus e pela mafia (NWO), conforme denuncias, cujo intuito seria para gerarem escândalos entre comparsas, facilitarem divulgações caluniosas, criarem dissensões internas e mundo afora em ambientes eclesiais, como dioceses, congregações, midia supostamente católica, escolas etc., e a caluniar, e os que a deixassem os arrebanhar a serviço de outros interesses ideológicos.
Assim, sentindo-se muito pressionado internamente, devido à idade e exaustão renunciou por condições deficitarias de enfrentamento da situação, inclusive na parte temporal, caso Banco do Vaticano.
Alguns exemplos: os 300 padres da Áustria querendo mais autonomia, a comunista Teologia da Libertação aliada a muitos idem sacerdotes, milhões de leigos e alguns bispos em muitos países das Américas, como no Brasil, Uruguai etc., coligando-se aqui ao marxista PT (da mesma ideologia básica dos nazistas e fascistas), desejando converter a Igreja uma ONG assistencialista ou na DITADURA DO RELATIVISMO, os RCCs dissensos praticando pentecostalismo protestante, os falsos ecumenismos, grupos rebeldes propondo tolerancia ao homosexualismo, outros ao aborto...
Quem atentou contra a Igreja de alguma forma - há religiosos alguns aventando possibilidades de participação, remorsos, como D Zollitsch em nome do episcopado alemão - ou ajudou eleger partidos comunistas que intensificam a perseguição ainda mais à Igreja, além disso prestar contas, possui determinado quinhão no stress e renuncia do S Padre.